Todavia, ainda é difícil entender que o abusador de outra pode ser um homem que amamos
Grupo dos machos - Como boa introvertida, meu passatempo favorito é observar as interações humanas. Em um dos meus ex-relacionamentos heterossexuais tive várias experiências antropológicas observando meu ex interagir com seus amigos, homens cis hétero. Eu obviamente era invisível para aquele grupo e pude vivenciar verdadeiras experiências antropológicas desse universo masculino padrão.
Um desses amigos do meu ex, que é um cara bonitão, simpático, desconstruído, da galera, que todo mundo ama, tinha uma amiga em comum comigo. Eu conhecia os dois dos mesmos rolês, e tinha muita admiração pela mulher que ela é. Os dois eram super próximos, um cara que ela chamava de irmão, priorizava sempre, melhores amigos. E ele correspondia esse afeto.
Até estar com seu grupo de amigos homens.
Uma vez, enquanto estava na casa do meu ex, ouvi uma conversa entre os caras. O bonitão estava se queixando da sua BFF, dando a entender que ela tinha algum interesse romântico nele. O que não fazia nenhum sentido, conhecendo a amiga como eu conhecia. Foi a primeira vez que tive esse clique. De como os homens se sentem à vontade para se lambuzar das vantagens do patriarcado e serem uns idiotas machistas quando estão entre si.
Dias depois, descobri que esse meu ex participava de um grupo com homens mais velhos que compartilhavam conteúdos explícitos de mulheres de uma maneira sempre vexatória. Me deu um calafrio só de imaginar os comentários que eles se sentiam à vontade de fazer ali no grupo dos machos.
(Descobri recentemente que a pesquisadora de gênero e saúde mental Valeska Zanello se dedica a estudar esses grupos dos machos no WhatsApp e fez muito sentido para mim).

Meu tio-avô estuprador - Na minha família, eu cresci sendo protegida de qualquer contato esporádico com um dos meus tios-avôs, um dos irmãos mais novos da minha avó, que tem menos de 50 anos hoje em dia e finalmente é um foragido da polícia —espero que preso em breve. A família toda fingia que não sabia do seu comportamento predador, que não poupou nem crianças da própria família, com vínculos sanguíneos muito próximos.
Um cara simpático, tão bonzinho, que ama criança e é amigo de todo mundo. E que sempre se relacionava exclusivamente com mulheres que tinham filhas pequenas e agredia muito cada uma das que tiveram o azar de viver sob o seu teto.
Minha mãe, minha tia e eu fizemos várias tentativas de denúncia por pedofilia contra ele por anos. As duas foram muito repreendidas, tratadas como as problemáticas da família. Um grupo de irmãos do pedófilo chegou a ir até a casa de vítimas, que já eram mulheres adultas e também da família, pedindo que não testemunhassem no caso, que só foi julgado poucos anos atrás e teve sentença no ano passado.
“Quando ele tiver na cadeia, vocês vão lá levar as coisas pra ele?”, ouvi uma tia-avó dizer uma vez, em defesa do irmão, que abusou de sua própria filha. Uma senhora religiosa, missionária do evangelho. Cuja a preocupação era levar o jumbo na cadeia para o irmão pedófilo.
Todavia - Todavia era a minha editora favorita. Comprei a agenda de 2025, que tem um trabalho lindo, com ilustrações da Mariana Zanetti e texto da Lilia Guerra. Um trabalho tão primoroso que só poderia ter sido feito por mulheres, eu pensei quando abri e folheei as primeiras páginas. Fiquei com o coração literário partido quando soube do episódio recente da Rádio Novelo.
Infelizmente, não fiquei surpresa. O que também não me surpreende é a dificuldade que ainda temos em entender que os homens que amamos também podem ser tóxicos, abusadores, machistas.
Nossos pais, irmãos, companheiros, amigos, tios-avôs queridos podem ter uma face que nem sempre é a que vemos. A face que eles só mostram quando estão entre outros homens, entre amigos, no grupo de machos do WhatsApp. Ou quando exercem seu poder de abuso contra outras mulheres.
Como filha de pais divorciados e uma pessoa que já passou por alguns términos de relacionamento com homens, posso dizer que é real aquela coisa de que você só conhece o seu esposo após o divórcio. Quando você deixa de ser a coisa que pertence àquele homem.
Seja como for, em relacionamentos heteronormativos, nós mulheres estamos do lado menos favorecido de uma relação de poder. E isso vale para diferentes tipos de relacionamentos afetivos. Não importa quanto um homem te ame, ou quanto você o ama, isso não muda. O que pode mudar é o comportamento dele em relação a você. Que algum dia pode ser tão ou mais ruim do que a forma com que ele já tratou outras mulheres.
Por isso, se uma mulher relata que um homem que amamos foi um bosta com ela, o mínimo que podemos fazer é ouvir. lembrar que ela e nós estamos do mesmo lado da balança no fim do dia. e tentar fugir do difícil jogo do patriarcado de usar nossa voz para defender o indefensável. Por homem de masculinidade tóxica, nem rés, nem juízas, muito menos advogadas.
"Por homem de masculinidade tóxica, nem rés, nem juízas, muito menos advogadas"!!!!!!!
Muito pertinente seu texto...
A gente só conhece o cara quando separa. Tô impressionada com a galera defendendo e aplaudindo aquele texto tenebroso e violento.